AUTOS N. 2007.960087-9; AUTOS N. 2008.960002-3; AUTOS N. 2008.960005-4
 
 
PARECER N. 6, DE 15 DE FEVEREIRO DE 2008.
 
 
PEDIDO DE PROVIDÊNCIA E CONSULTAS – CONTRATO PARTICULAR DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL COM A UTILIZAÇÃO DE RECURSO FGTS – VALIDADE OU NÃO DO INSTRUMENTO PARTICULAR – ENTIDADE INTEGRANTE DO SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO- INTELIGÊNCIA DO ART.61, § 5º, DA LEI N. 4.380/61 C/C ART. 20, VII, b, DA LEI N. 8.036/90 – PREVALÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL – DESNECESSIDADE DE ESCRITURA PÚBLICA – APLICABILIDADE DA TEORIA DA PONDERAÇÃO DE INTERESSES.
 
 
Senhor Corregedor-Geral:
A CAIXA ECONÔMICA FEDERALsubmete ao crivo deste Órgão Correicional pedido de providência sustentando, em síntese:
1 – por meio de ofício remetido pela ANOREG/MS tomou conhecimento de que os registradores foram orientados a não receber os contratos particulares para aquisição de imóveis com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, sem financiamento;
2 – a recusa está consubstanciada no entendimento de que o registro dos contratos dessa natureza afrontaria o disposto no artigo 108 do Código Civil;
3 – por força de Lei Complementar n. 4.380/64, com redação dada pela Lei n.  5.049/66, os contratos relativos ao Sistema Financeiro da Habitação poderão ser celebrados por instrumento particular, transcrevendo matérias extraídas dos sites do Banco Central do Brasil- BACEN e do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, que corroboram suas assertivas;
4 – a tese levantada pela ANOREG/MS não é legítima, porquanto manifestamente contrária à finalidade social de norma expressa em Lei Federal, a qual prestigia a economia dos emolumentos devidos aos cartórios como meio de viabilizar o acesso à moradia;
5 – por ser a questão de interesse coletivo, pugna pela edição de ato normativo com o objetivo de orientar o serviço notarial e registral a efetuar o registro de contrato particular com a liberação de recursos do FGTS.
A Caixa Econômica Federal reitera o pedido, por meio de Medida Cautelar em caráter incidental ao pedido de providências, destacando que a negativa da tutela ao direito invocado implica ameaça de lesão a direito líquido e certo.
Instruem a Medida Cautelar documentos que comprovam a recusa ao registro dos contratos particulares, com a liberação de recursos do FGTS, assim como a decisão do juiz diretor do foro de Campo Grande, prolatada nos autos da consulta n. 001.07127711-1, que decidiu pela necessidade de escritura pública nos casos de aquisição imobiliária com liberação de recursos do FGTS.
No mesmo sentido, o DD. Magistrado Renato Antônio de Liberali, juiz de direito no exercício da direção do foro de Três Lagoas, em atendimento ao que estabelece o artigo 17 do Provimento n. 001/2003 remete cópia de decisão proferida nos autos de consulta, cujo objeto é a validade ou não do instrumento particular, utilizado na compra e venda de imóvel residencial, sem financiamento, firmado com a Caixa Econômica Federal, para verificar a necessidade de se editar ato normativo acerca da matéria.
Em manifestação às f. 21-22 do processo n. 2007.960087-9, o chefe do departamento correicional, ratifica a decisão prolatada pelo Juiz Diretor do Foro de Três Lagoas.
De igual modo, a Associação dos Notários e Registradores do Estado de Mato Grosso do Sul – ANOREG-MS formula consulta questionando se é essencial à validade das aquisições imobiliárias feitas mediante liberação de recurso do FGTS o disposto no artigo 108 do Código Civil ou poderia ser formalizado por instrumento particular, consoante o art. 61, § 5º da Lei n. 4.380/64.
Acompanha a consulta documentos de f. 11-14.
A Procuradoria-Geral de Justiça (f. 33-38), manifesta-se pela desnecessidade de escritura pública nos contratos em que for parte interessada entidade integrante do Sistema Financeiro de Habitação.
OPINO:
Versam os autos acerca da exigência ou não de escritura pública nos contratos, que envolve a compra e venda da casa própria, com a utilização do FGTS.
Com a vigência do Novo Código Civil, instalou-se uma celeuma acerca da obrigatoriedade da elaboração de escritura pública, para conferir validade aos contratos de compra e venda da casa própria, com recurso do FGTS.
A controvérsia tem dois alicerces: 1) o artigo 108 do Código Civil; 2) o artigo 61, § 5º, da Lei n. 4.380/64.
Ante as questões postas, a presente manifestação, em face ao princípio informativo lógico, obedecerá à seguinte ordem:
1 - Do artigo 108 do Código Civil
Como se observará do comando abaixo citado, a lavratura de escritura pública é substancial aos contratos constitutivo e translativo de direitos reais sobre imóveis, cujo valor seja superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Disciplina o artigo 108 do Código Civil:
Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente do País”
Da leitura do artigo supramencionado, existem duas exceções que prescindem de escritura pública para a formalização do negócio jurídico: a) de valor inferior a 30 (trinta) salários mínimos e b) quando a lei expressamente reconhece a validade de contratos particulares.
Infere-se que a escritura pública não é a única forma para a formalização do negócio que envolva constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, pois havendo previsão expressa, por meio de lei especial, alguns negócios jurídicos poderão ser realizados por instrumento particular.
Uma das argumentações apresentadas por aqueles que se filiam à tese da obrigatoriedade da escritura pública é a insegurança que o instrumento particular proporciona aos contratantes, principalmente quando se negocia direitos reais imobiliários, revela, segundo eles, que a escritura pública tem valor probatório pleno, assegurando a legalidade do ato.
De outra via, a objeção feita pelos defensores da obrigatoriedade da escritura pública na hipótese de compra e venda de imóvel, com recursos do FGTS, sem financiamento, é quanto ao possível desvio de finalidade, pois não se pode anular a essência do artigo 108 do Código Civil.
Não obstante tal entendimento, a atividade administrativa com o objetivo de prover aos interesses públicos deve fazer em conformidade com os meios e formas estabelecidos pela lei.
Assim, ao prescrever que “não dispondo a lei em contrário” permite a aplicabilidade de lei especial, que disponha acerca da possibilidade de se formalizar compra e venda de imóvel por instrumento particular, logo não há que se falar em desatendimento ao princípio da legalidade.
Com muita propriedade, Celso Antônio Bandeira de Mello tece as seguintes explanações sobre o assunto:
“Cumpre ao administrador cingir-se não apenas à finalidade própria de todas as leis, que é o interesse público, mas também à finalidade específica abrigada na lei a que esteja dando execução, havendo, portanto, nulidade do ato quando a atuação administrativa é estranha a qualquer finalidade pública como naquela em que o fim perseguido, se bem que de interesse público, não é o fim preciso que a lei assinalava para tal ato. Descende também do princípio da legalidade o princípio da razoabilidade, segundo o qual, nos casos em que a Administração dispõe de certa liberdade para eleger o comportamento cabível diante do caso concreto, não poderá agir desarrazoadamente, de maneira ilógica, sendo considerado tal ato como inválido cabível, inclusive, de fulminação pelo Poder Judiciário a requerimento do interessado.
O fato de a lei conferir ao administrador certa liberdade (margem de discrição) significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversidade de situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual delas, o que não significa que lhe tenha sido outorgado o poder de agir ao sabor exclusivo de seu arbítrio”
Dessarte, não se afigura desvio de finalidade adotar a hipótese que se verifica mais apropriada ao atendimento ao caráter social, que consiste na aquisição da casa própria pelo trabalhador, com a utilização dos recursos do FGTS, transação concretizada nas condições vigentes para o Sistema Financeiro da Habitação.
Mesmo porque a questão refere-se à aplicabilidade da lei, sendo certo que incumbe ao aplicador do direito obedecer aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do bem comum.
2) Do artigo 61, § 5º, da Lei n. 4.380/64, alterada pelo artigo 1º da Lei n. 5.049/66
Em oposição à corrente da obrigatoriedade da escritura pública aos casos de aquisição de bem imóvel, com a utilização de recursos do FGTS, sem financiamento, encontra-se a que defende que a legislação especial assegura ao contrato particular força de instrumento público.
Consoante a inteligência do artigo 61, § 5º, da Lei n. 4.380/64:
Art. 61. Para plena consecução do disposto no artigo anterior, as escrituras deverão consignar exclusivamente as cláusulas, termos ou condições variáveis ou específicas.
(....)
5º Os contratos de que forem parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades que integrem o Sistema Financeiro da Habitação, bem como as operações efetuadas por determinação da presente Lei, poderão ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão ser impressos, não se aplicando aos mesmos as disposições do art. 134, II, do Código Civil, atribuindo-se o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, aos contratos particulares firmados pelas entidades acima citados até a data da publicação desta Lei”.
A controvérsia reside no alcance da norma supracitada, porquanto o papel exercido pela Caixa Econômica Federal em contrato de compra e venda de imóvel residencial sem financiamento, com utilização dos recursos da conta vinculada do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS é de interveniente, que, segundo os adeptos da obrigatoriedade da escritura pública, não se insere como parte integrante do Sistema Financeiro da Habitação.
Entrementes, ainda que a figura da Caixa Econômica Federal se apresente como interveniente nos contrato de compra e venda de imóvel sem financiamento e com recurso do FGTS, induvidosamente ela integra o Sistema Financeiro da Habitação, de modo que não se revela razoável diferenciar os contratos dessa natureza, pois têm como fins precípuos os mesmos daqueles em que: 1) financiamento integral pela Caixa Econômica Federal; 2) parte financiada pela Caixa Econômica Federal e 3) parte financiada pela Caixa Econômica Federal, parte com recurso do FGTS e o saldo com recursos próprios do financiado.
É de suma importância a conjugação do artigo 61, § 5º, da Lei n. 4.380/64 e artigo 20, inciso VII, alínea “b”, da Lei n. 8.036/90, porquanto se constata, de forma irrefutável, que a utilização dos recursos do FGTS para aquisição da moradia própria ser de caráter eminentemente social, a despeito de utilizar parte ou o total do recurso do FGTS.
Malgrado o entendimento de que a Caixa Econômica Federal na qualidade de integrante do SFH nada tem que ver com sua qualidade de agente operadora do FGTS, a meu sentir o artigo 20, inciso VII, alínea “b”, da Lei n. 8.036/90, evidencia, sem qualquer exceção, que deverão ser aplicadas as condições vigentes para o Sistema Financeiro de Habitação.
Reza o artigo 20, inciso VII, alínea “b” da Lei n. 8.036/90:
“Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:
(...)
VII - pagamento total ou parcial do preço da aquisição de moradia própria, observadas as seguintes condições:
(...)
b) seja a operação financiável nas condições vigentes para o SFH;”(destaquei) Se o Sistema Financeiro da Habitação tem por escopo facilitar e promover a construção e a aquisição da casa própria ou moradia, indaga-se: por que tal finalidade não seria aplicada à hipótese de compra e venda de imóvel, com a utilização do FGTS, sem financiamento?
A Caixa Econômica Federal não deixa de integrar o SFH, por figurar como interveniente, pois o propósito é o mesmo que nas situações onde o financiamento do imóvel residencial é integralmente feito pela Caixa Econômica Federal, o de facilitar a aquisição da casa própria às classes de menor renda da população.
A propósito, poucas são as possibilidades de o trabalhador efetuar o levantamento do FGTS, sendo uma delas de aquisição de moradia, logo, não há falar em inaplicabilidade do dispositivo supramencionado, com a justificativa de não figurar a Caixa Econômica Federal como parte integrante do Sistema Financeiro da Habitação.
Ante o expendido, induvidoso que as transações envolvendo os contratos de compra e venda de imóvel, com a utilização total ou parcial dos recursos do FGTS, serão regidos pelas condições vigentes para o Sistema Financeiro da Habitação.
3- Da aplicação da Teoria da Ponderação dos Interesses
O tema debatido deve ser analisado pelos diversos núcleos dos direitos fundamentais, norteado pela reflexão do direito enquanto garantia da dignidade da pessoa humana, incentivador de direitos sociais, econômicos e culturais, inclusive abrangendo os interesses coletivos e difusos.
Se por um lado, a exigência da escritura pública, nos termos do artigo 108 do Código Civil, garante a eficácia dos negócios jurídicos, proporcionando publicidade em relação a terceiros; de outro, estamos diante de um direito social à moradia, essência da dignidade da pessoa humana.
Nelson Saule Júnior dilucida:
“A dignidade da pessoa humana como comando constitucional será observada quando os componentes de uma moradia adequada forem reconhecidos pelo Poder Público e pelos agentes privados, responsáveis pela execução de programas e projetos de habitação e interesse social, como elementos necessários à satisfação do direito à moradia”1
Nessa linha de raciocínio, não se revela justo e razoável que o trabalhador suporte o peso do custo com a escritura, sob pena de se ferir um direito fundamental a ele assegurado, já que, justamente objetivando viabilizar a aquisição da casa própria, a legislação pertinente estabelece a hipótese de levantamento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS.
Na situação em apreço, estão evidentes os valores conflitantes, o da exigência de escritura pública e o direito social à moradia, acarretando a necessidade de se socorrer da teoria da ponderação de interesses, para optar por um bem da vida mais valioso.
É certo que o direito à moradia, ao assumir o status de fundamental, reflete valores imprescindíveis à existência digna do indivíduo.
Por oportuno, colho os ensinamentos do Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes:
“O exercício da ponderação é sensível à idéia de que, no sistema constitucional, embora todas as normas tenham o mesmo status hierárquico, os princípios constitucionais podem ter “pesos abstratos” diversos. Mas esse peso abstrato é apenas um dos fatores a ser ponderado. Há de se levar em conta, igualmente, o grau de interferência sobre o direito preterido que a escolha do outro pode ocasionar. Por fim, a ponderação deve ter presente a própria confiabilidade das premissas empíricas em que se escoram os argumentos sobre o significado da solução proposta para os direitos em colisão”2
Acerca da matéria, Daniel Sarmento assevera:
“Assim, na ponderação de interesses, torna-se necessário o recurso ao pensamento tópico-argumentativo, pois o ordenamento constitucional não apresenta uma resposta pronta para cada conflito de princípios, que possa ser abstratamente inferida do sistema”3
1 - A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2004, pág. 149.
2 - Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 2007, p. 275-276
3 - A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 99
Sopesados os valores submetidos à análise, deve prevalecer aquele que melhor atenda aos interesses da coletividade, ou seja, o de concretizar os programas e projeto de moradia e interesse social, realizando a igualização de situações desiguais.
Por fim, incumbe ao oficial registrador atender ao que determina a lei especial, registrando os instrumentos particulares, nos moldes do art. 61, § 5º, da Lei n. 4.864/64.
Conclui-se, ante as ponderações expostas e o aventado pela Douta Procuradoria-Geral de Justiça, assistir razão ao pleito da Caixa Econômica Federal, devendo ser revogadas as decisões em sentido contrário.
Por essas razões, o parecer que submeto a Vossa Excelência é no sentido de ser considerado válido o instrumento particular na hipótese de compra e venda de imóvel residencial, com a utilização de recursos do FGTS, sem financiamento, consoante os artigos 61, § 5, da Lei n. 4.864/64 e 20, inciso VII, alínea “b”, da Lei n. 8.036/90.
 
Campo Grande (MS), 15 de fevereiro de 2008.
 
Ricardo Gomes Façanha
Juiz de Direito Auxiliar da CGJ/MS
 
 
AUTOS N. 2007.960087-9: AUTOS N. 2008.960002-3; AUTOS N. 2008.960005-4
 
 
Pedido de Providência e Consulta
Requerentes: Caixa Econômica Federal - CEF
Associação dos Notários e Registradores do Estado de Mato Grosso do Sul – ANOREG
Vistos.
Homologo o parecer, pelos seus próprios fundamentos, tendo em vista a divergência de entendimentos no âmbito Estadual e a necessidade de padronização, confiro ao parecer caráter normativo, para estrito cumprimento, revogando-se às decisões em contrário.
Comunique-se à Caixa Econômica Federal, à Anoreg, aos Oficiais Registradores e aos Juízes Diretores.
Campo Grande (MS), 15 de fevereiro de 2008.
 
Des. Divoncir Schreiner Maran
Corregedor-Geral de Justiça
 
Campo Grande, 20 de fevereiro de 2008.
 
Azenaide Rosselli Alencar
Diretora da Secretaria da Corregedoria-Geral de Justiça
 
 
DJMS-08(1675):5-6, 21.2.2008